terça-feira, 22 de setembro de 2009

O espelho

Percebendo o sumiço da neta, ela se deu conta de que talvez a houvesse magoado. Mas, ainda assim, autojustificava-se, pois uma tarde inteira de trabalho duro significara, devido à menina, pouco mais que nada.

Elisa tinha seis anos de idade e agitação. Feito todas as crianças - ou quase todas - do mundo, a pequena brincava com a imaginação. Em certa hora do dia, viajava ao Pólo Norte cheia de almofadas, quer dizer, malas nas mãos. Já em outros instantes, era a professora de português dos ursinhos, ou melhor, alunos. Além de muito imaginar, a menina também falava continuamente e corria muito. Um dia, de tanto correr levou uma bronca.

Lourdes era uma boa avó. Com todo carinho cuidava de Elisa, mas, às vezes, perdia a paciência.Um dia, de tanto trabalhar deu uma bronca. De sete da manhã às duas e quarenta e cinco da tarde, Lourdes havia preparado um bolo para a festa de aniversário de outra netinha. Confeitou-o com zelo. Gastou dinheiro e fez uma bela decoração comestível. Quando finalmente o terminou, olhou aliviada a obra de arte durante uns segundo extensos, carregou o bolo nos braços e foi guardá-lo na geladeira da cozinha que ficava do lado de fora da casa. Foi então que Elisa veio correndo. Trombou com o monte de glacê e brigadeiro. Jogou o atrativo central da festa que aconteceria naquela noite no chão.


Quem visse as expressões da avó e da neta não saberiam descrevê-las com precisão, tamanho susto as surpreendera.Enquanto o bolo beijava o piso, avó gritava e netinha pasmava, envergonhava-se, tentava se desculpar. Lourdes não acreditava no que via, não acreditava. E repreendeu com bons insultos a criança desajeitada, desatenta, descuidada. Irritada, finalmente foi limpar a sujeira com murmúrios, lamentando-se de ter que repetir todo o trabalho culinário.

Elisa saiu de mansinho e foi ao espelho do quarto da avó. Era um espelho grande com moldura antiga. Levando suas mãozinhas trêmulas ao delicado rosto de menina, arranhou-o diante do vidro refletor. A vermelhidão das listas horizontais, causada pelas unhas infantis, compunha com lágrimas uma expressão triste, de criança injustiçada.


Só depois de muito tempo, Lourdes caminhou pela casa à procura da neta. No quarto do espelho ela já não estava. A avó avistou-a sentadinha, escondida aos pés do portão dos fundos, sem correr, sem falar, sem imaginar.




Jéssica Vieira
21/09/09

A estrada vazia fala comigo
O passo de ninguém abre caminho

A voz do vento em diálogo comigo
O límpido lago transparece o caminho

A marcha animal é prova da falta
O desaparecer humano se põe à mostra

A minha pele transparecida brilha
O sumiço do semelhante fortifica

A minha força ausente apresenta-se
O meu cabelo a brisa sopra

A música é o silêncio dos homens
O ritmo é o falar da solidão

A estrada solitária abraça
O estar só dos não abraçados.



Jéssica Vieira
04/o6/09